sexta-feira, 8 de julho de 2011

A boneca no bolso: Vasalisa, a sabida



Farejando os fatos: O resgate da intuição como iniciação

A boneca no bolso: Vasalisa, a sabida

A intuição é o tesouro da psique da mulher. Ela é como um instrumento de
adivinhação, como um cristal através do qual se pode ver com uma visão interior
excepcional. Ela é como uma velha sábia que está sempre com você, que lhe diz
exata-mente qual é o problema, que lhe diz exatamente se você deve virar à
esquerda ou à direita. Ela é uma forma de velha La Que Sabe, Daquela Que Sabe, da
Mulher Selvagem.

As contadoras de histórias dedicadas estão sempre longe, aos pés de algum
morro, afundadas até os joelhos na poeira das histórias, retirando séculos de sujeira,
escavando camadas de culturas e de conquistas, classificando cada friso e cada
afresco de história que possam encontrar. Às vezes a história foi reduzida a pó, às
vezes porções e detalhes estão faltando ou foram perdidos; com freqüência, a forma
está intacta mas o espírito está destruído. Mesmo assim, toda escavação traz em si a
esperança de se encontrar uma história inteira, intacta. A história que se segue é
exatamente um incrível tesouro desses.

O antigo conto russo de “Vasalisa1 ” é a história praticamente intacta da
iniciação de uma mulher. Ele trata da percepção de que a maioria das coisas não é o
que parece. Como mulheres, recorremos à nossa intuição e aos nossos instintos para
farejar tudo. Usamos nossos sentidos para espremer a verdade das coisas, para
extrair o alimento das idéias, para ver o que há para ser visto, para conhecer o que há
para ser conhecido, para ser as guardiãs do fogo criativo e para ter uma compreensão
íntima dos ciclos de vida-morte-vida de toda a natureza — assim é uma mulher
iniciada.

A história de Vasalisa é contada na Rússia, na Romênia, na lugoslávia, na
Polônia e em todos os países bálticos. Ela às vezes é intitulada "A boneca"; às vezes,
"Wassilissa, a sabida". Encontramos indícios de suas raízes arquetípicas até pelo
menos o tempo dos cultos das antigas deusas-cavalo que antecederam a cultura grega
clássica. É um conto que traz um mapeamento psíquico antiqüíssimo acerca da
indução no mundo subterrâneo do selvagem Deus-fêmea. Ele fala de como infundir
nas mulheres o poder instintivo básico da Mulher Selvagem: a intuição.
Essa história me foi passada por tia Kathé. Ela começa com um dos mais
antigos truques conhecidos dos contadores de histórias: “Era uma vez, e não era uma
vez...”2 Essa frase paradoxal tem a intenção de alertar a alma do ouvinte para o fato
de a história ter lugar no mundo entre os mundos, onde nada é o que parece ser à
primeira vista. Comecemos, portanto.
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Vasalisa

Era uma vez, e não era uma vez, uma jovem mãe que jazia no seu leito de
morte, com o rosto pálido como as rosas brancas de cera na sacristia da igreja dali de
perto. Sua filhinha e seu marido estavam sentados aos pés da sua velha cama de
madeira e oravam para que Deus a conduzisse em segurança até o outro mundo.

A mãe moribunda chamou Vasalisa, e a criança de botas vermelhas e avental
branco ajoelhou-se ao lado da mãe.

— Essa boneca é para você, meu amor — sussurrou a mãe, e da coberta felpuda
ela tirou uma bonequinha minúscula que, como a própria Vasalisa, usava botas
vermelhas, avental branco, saia preta e colete todo bordado com linha colorida.

— Estas são as minhas últimas palavras, querida — disse a mãe. — Se você se
perder ou precisar de ajuda, pergunte à boneca o que fazer. Você receberá ajuda.
Guarde sempre a boneca. Não fale a ninguém sobre ela. Dê-lhe de comer quando ela
estiver com fome. Essa é a minha promessa de mãe para você, minha bênção,
querida. — E, com essas palavras, a respiração da mãe mergulhou nas profundezas do
seu corpo, onde recolheu sua alma, e saiu correndo pelo lábios; e a mãe morreu.

A criança e o pai choraram sua morte muito tempo. No entanto, como o campo
arrasado pela guerra, a vida do pai voltou a verdejar por entre os sulcos e ele
desposou uma viúva com duas filhas. Embora a nova madrasta e suas filhas fossem
gentis e sorrissem como damas, havia algo de corrosivo por trás dos sorrisos que o
pai de Vasalisa não percebia.

Realmente, quando as três estavam sozinhas com Vasalisa, elas a
atormentavam, forçavam-na a lhes servir de criada, mandavam-na cortar lenha para
que sua pele delicada se ferisse. Elas a detestavam porque Vasalisa tinha uma doçura
que não parecia deste mundo. Ela era também muito bonita. Seus seios eram fartos,
enquanto os delas definhavam de maldade. Ela era solícita e não se queixava,
enquanto a madrasta e as duas filhas eram, entre si mesmas, como ratos no monte de
lixo à noite.

Um dia a madrasta e suas filhas simplesmente não conseguiam mais agüentar
Vasalisa.

— Vamos... combinar de deixar o fogo se apagar e, então, vamos mandar
Vasalisa entrar na floresta para ir pedir fogo para nossa lareira a Baba Yaga, a bruxa.
E, quando ela chegar até Baba Yaga, bem, a velha irá matá-la e comê-la. — As três
bateram palmas e guincharam como animais que vivem na escuridão.

Por isso, naquela noite, quando Vasalisa voltou para casa depois de catar
lenha, a casa estava completamente às escuras. Ela ficou muito preocupada e falou
com a madrasta.

— O que aconteceu? Como vamos fazer para cozinhar? O que vamos fazer para
iluminar as trevas?

— Sua imbecil — reclamou a madrasta. — É claro que não temos fogo. E eu não
posso sair para o bosque devido à minha idade. Minhas filhas não podem ir porque
têm medo. Você é a única que tem condições de sair floresta adentro para encontrar
Baba Yaga e conseguir dela uma brasa para acender nosso fogo de novo.

— Ora, está bem — respondeu Vasalisa inocente. — É o que vou fazer. — E
foi mesmo. A floresta ia ficando cada i mais escura, e os gravetos estalavam sob seus
pés, deixando assustada. Ela enfiou a mão bem fundo no bolso do avental e ali estava
a boneca que a mãe ao morrer lhe havia dado.

— Só de tocar nessa boneca, já me sinto melhor — disse Vasalisa,
acariciando a boneca no bolso.

— A cada bifurcação da estrada, Vasalisa enfiava a mão» bolso e
consultava a boneca. “Bem, eu devo ir para a esquerda ou para direita?” A boneca
respondia “Sim”, “Não”, “Para esse lado” ou “Para aquele lado”. E Vasalisa dava à
boneca um pouco de pão enquanto ia caminhando, seguindo o que sentia estar
emanando da boneca.

De repente, um homem de branco num cavalo branco passou galopando, e o
dia nasceu. Mais adiante, um homem de vermelho passou montado num cavalo
vermelho, e o sol apareceu. Vasalisa caminhou e caminhou e, bem na hora em que
estava chegando ao casebre de Baba Yaga, um cavaleiro vestido de negro passou
trotando e entrou direto no casebre. Imediatamente fez-se noite. A cerca feita de
caveiras e ossos ao redor da choupana começou a refulgir com um fogo interno de tal
forma que a clareira ali na floresta ficou iluminada com uma luz espectral.

Ora, Baba Yaga era uma criatura muito temível. Ela viajava, não num coche,
nem numa carruagem, mas num caldeirão com o formato de um gral que voava
sozinho. Ela remava esse veículo com um remo que parecia um pilão e o tempo todo
varria o rastro por onde passava com uma vassoura feita do cabelo de alguém morto
há muito tempo.

E o caldeirão veio voando pelo céu, com o próprio cabelo sebento de Baba Yaga
na esteira. Seu queixo comprido curvado para cima e seu longo nariz era curvado
para baixo de modo que os dois se encontravam a meio caminho. Baba Yaga tinha um
ínfimo cavanhaque branco e verrugas na pele adquiridas de seus contatos com sapos.
Suas unhas manchadas de marrom eram grossas e estriadas como telhados, e tão
compridas e recurvas que ela não conseguia fechar a mão.

Ainda mais estranha era a casa de Baba Yaga. Ela ficava em cima de enormes
pernas de galinha, amarelas e escamosas, e andava de um lado para o outro sozinha.
Ela às vezes girava e girava como uma bailarina em transe. As cavilhas nas portas e
janelas eram feitas de dedos humanos, das mãos e dos pés e a tranca da porta da
frente era um focinho com muitos dentes pontiagudos.

Vasalisa consultou sua boneca. "E essa casa que procuramos?" E a boneca, a
seu modo, respondeu: "É, é essa a que procuramos." E antes que ela pudesse dar mais
um passo. Baba Yaga no seu caldeirão desceu sobre Vasalisa, aos gritos.
— O que você quer?
— Vovó, vim apanhar fogo — respondeu a menina, estremecendo. — Está frio
na minha casa... o meu pessoal vai morrer... preciso de fogo.

— Ah, sssssei — retrucou Baba Yaga, rabugenta. — Conheço você e o seu
pessoal. Bem, criança inútil... você deixou o fogo se apagar. O que é muita
imprudência. Além do mais, o que a fez pensar que eu lhe daria a chama?

— Porque eu estou pedindo — respondeu rápido Vasalisa depois de consultar a
boneca.

— Você tem sorte — ronronou Baba Yaga. — Essa é a resposta certa.
E Vasalisa se sentiu com muita sorte por ter acertado a resposta. Baba Yaga,
porém, a ameaçou.

— Não há a menor possibilidade de eu lhe dar o fogo antes de você fazer algum
trabalho para mim. Se você realizar essas tarefas para mim, receberá o fogo. Se não...
— E nesse ponto Vasalisa viu que os olhos de Baba Yaga de repente se transformavam
em brasas. — Se não, minha filha, você morrerá.

E assim Baba Yaga entrou pesadamente no casebre, deitou-se na cama e
mandou que Vasalisa lhe trouxesse a comida que estava no forno. No forno havia
comida suficiente para dez pessoas, e a Yaga comeu tudo, deixando uma pequena
migalha e um dedal de sopa para Vasalisa.

Lave minha roupa, varra a casa e o quintal, prepare minha comida, separe o
milho mofado do milho bom e certifique-se de que tudo está em ordem. Volto mais
tarde para inspecionar seu trabalho. Se tudo não estiver pronto, você será meu
banquete. — E com isso a Baba Yaga partiu voando no seu caldeirão com o nariz lhe
servindo de biruta e o cabelo, de vela. E anoiteceu novamente.

— Vasalisa voltou-se para a boneca assim que a Yaga se foi.

— — O que vou fazer? Vou conseguir cumprir as tarefas a tempo? — A boneca
disse que sim e recomendou que ela comesse algo e fosse dormir. Vasalisa deu algo de
comer à boneca também e adormeceu.

Pela manhã, a boneca havia feito todo o trabalho, e só faltava preparar a
refeição. À noite, a Yaga voltou e não encontrou nada por fazer. Satisfeita, de certo
modo, mas irritada por não conseguir encontrar nenhuma falha, Baba Yaga zombou
de Vasalisa.

— Você é uma menina de sorte. — Ela, então, convocou seus fiéis criados para
moer o milho, e três pares de mãos apareceram em pleno ar e começaram a raspar e
esmagar o milho. Os resíduos pairavam no ar como uma neve dourada. Finalmente, o
serviço terminou, e Baba Yaga se sentou para comer. Comeu horas a fio e deu ordens
a Vasalisa para que no dia seguinte limpasse a casa, varresse o quintal e lavasse a
roupa.

— Naquele monte de estrume — disse a Yaga, apontando para um enorme
monte de estrume no quintal — há muitas sementes de papoula, milhões de sementes
de papoula. Amanhã quero encontrar um monte de sementes de papoula e um monte
de estrume, completamente separados um do outro. Compreendeu?

— Meu Deus, como vou fazer isso? — exclamou Vasalisa, quase desmaiando.
— Não se preocupe, eu me encarrego — sussurrou a boneca, quando a menina
enfiou a mão no bolso.

Naquela noite. Baba Yaga adormeceu roncando, e Vasalisa tentou... catar...
as... sementes de papoula... do... meio... do... estrume.

— Durma agora — disse-lhe a boneca, depois de algum tempo. — Tudo vai dar
certo.

Mais uma vez, a boneca executou todas as tarefas e, quando a velha voltou,
tudo estava pronto.

— Ora, ora! Que sorte a sua de conseguir acabar tudo! — disse Baba Yaga,
falando sarcástica pelo nariz. Ela chamou seus fiéis criados para prensar o óleo das
sementes, e novamente três pares de mãos apareceram e cumpriram a tarefa.
Enquanto a Yaga estava besuntando os lábios na gordura;
do cozido, Vasalisa ficou parada por perto.

— E aí, o que é que você está olhando? — perguntou Baba Yaga, de mau
humor.
— Posso lhe fazer umas perguntas, vovó? — perguntou Vasalisa.

— Pergunte — ordenou a Yaga —, mas lembre-se, saber demais envelhece as
pessoas antes do tempo.

Vasalisa perguntou quem era o homem de branco no cavalo branco.

— Ah — respondeu a Yaga, com carinho. — Esse primeiro é o meu Dia.

— E o homem de vermelho no cavalo vermelho?

— Ah, esse é o meu Sol Nascente.

— E o homem de negro no cavalo negro?

— Ah, sim, esse é o terceiro e ele é a minha Noite.

— Entendi — disse Vasalisa.

— Vamos, vamos, minha criança. Não quer me fazer mais perguntas? —
sugeriu a Yaga, manhosa.

Vasalisa estava a ponto de perguntar sobre os pares de mãos que apareciam e
desapareciam, mas a boneca começou a saltar dentro do bolso e, em vez disso,
Vasalisa respondeu.

— Não, vovó. Como a senhora mesma diz, saber demais pode envelhecer a
pessoa antes da hora.

— É — disse a Yaga, inclinando a cabeça como um passarinho —, você é muito
ajuizada para a sua idade, menina. Como conseguiu isso?

— Foi a bênção da minha mãe — disse Vasalisa, com um sorriso.

— Bênção?! — guinchou Baba Yaga. — Bênção?! Não precisamos de bênção
nenhuma aqui nesta casa. É melhor você procurar seu caminho, filha. — E foi
empurrando Vasalisa para o lado de fora. — Vou lhe dizer uma coisa, menina. Olhe
aqui! — Baba Yaga tirou uma caveira de olhos candentes da cerca e a enfiou numa
vara. — Pronto! Leve esta caveira na vara até sua casa. Isso! Esse é o seu fogo. Não
diga mais uma palavra sequer. Só vá embora.

Vasalisa ia agradecer à Yaga, mas a bonequinha no fundo do bolso começou a
saltar para cima e para baixo, e Vasalisa percebeu que devia só apanhar o fogo e ir
embora. Ela voltou correndo para casa, seguindo as curvas e voltas da estrada com a
boneca lhe indicando o caminho. Era noite, e Vasalisa atravessou a floresta com a
caveira numa vara, com o brilho do fogo saindo pelos buracos dos ouvidos, dos olhos,
do nariz e da boca. De repente, ela sentiu medo dessa luz espectral e pensou em jogála
fora, mas a caveira falou com ela, insistindo para que se acalmasse e prosseguisse
para a casa da madrasta e das filhas.

Quando Vasalisa ia se aproximando da casa, a madrasta e suas filhas olharam
pela janela e viram uma luz estranha que vinha dançando pela mata. Cada vez
chegava mais perto. Elas não podiam imaginar o que aquilo seria. Já haviam
concluído que a longa ausência de Vasalisa indicava que ela a essa altura estava
morta, que seus ossos haviam sido carregados por animais, e que bom que ela havia
desaparecido!

Vasalisa chegava cada vez mais perto de casa. E, quando a madrasta e suas
filhas viram que era ela, correram na sua direção dizendo que estavam sem fogo
desde que ela havia saído e que, por mais que tentassem acender um, ele sempre se
extinguia.

Vasalisa entrou na casa, sentindo-se vitoriosa por ter sobrevivido à sua
perigosa jornada e por ter trazido o fogo para casa. No entanto, a caveira na vara
ficou observando cada movimento da madrasta e das duas filhas, queimando-as por
dentro. Antes de amanhecer, ela havia reduzido a cinzas aquele trio perverso.
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E assim termina, com um final abrupto para abalar as pessoas tirando-as do
conto de fadas e as devolvendo para a realidade. Existem muitos finais desse tipo nos
contos de fadas. Eles equivalem a dar um susto nos ouvintes para trazê-los de volta à
realidade concreta.

Vasalisa é uma história da transmissão da bênção do poder da intuição das
mulheres de mãe para filha, de uma geração para a outra. Esse enorme poder, o da
intuição, tem a rapidez de um raio e é composto de visão interior, audição interior,
percepção interior e conhecimento interior.

Durante gerações a fio, esses poderes intuitivos transformaram-se em
correntes subterrâneas dentro das mulheres, enterradas pelo descrédito e pela falta
de uso. No entanto, Jung uma vez observou que nada jamais se perde na psique.
Podemos ter a confiança de que tudo o que foi perdido na psique ainda está lá.
Portanto, esse repositório da intuição instintiva das mulheres nunca se perdeu
realmente, e tudo o que estiver encoberto poderá voltar a ser exposto.

Para compreender uma história dessas, consideramos que todos os seus
componentes representam a psique de uma única mulher. Desse modo, todos os
aspectos da história pertencem a uma única psique que passa por um processo de
iniciação. A iniciação é representada pelo cumprimento de certas tarefas. Nesse
conto, há nove tarefas a serem cumpridas pela psique. Elas se concentram na
aprendizagem dos hábitos da Velha Mãe Selvagem.

Com a realização dessas tarefas, a intuição da mulher — esse ser sagaz que vai
onde a mulher for, que examina todos os aspectos da sua vida e tece comentários
sobre a verdade de tudo com precisão e rapidez — é reinstalada na sua psique. O
objetivo é um relacionamento do amor e confiança com esse ser a quem chamamos
de “a mulher que sabe”, a Mulher Selvagem.

Mulheres que Correm Com os Lobos
Clarissa Pinkola Estés

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